No último dia 09 de janeiro, a Lei Federal 10.639 completou 20 anos desde sua promulgação e, no decorrer deste tempo, muitas mudanças políticas e históricas aconteceram em nosso país. O que não mudou é que o racismo continua sendo uma mazela que silencia e negligencia muitas vidas e histórias, herança perversa deixada pelos colonizadores e perpetuada através da estrutura racista no qual nossa sociedade se debruça.
Para quem não lembra, a Lei 10.639/03, em suma, torna obrigatório o ensino da história africana e afro-brasileira dentro dos espaços escolares e dá outras providências, tornando-se, portanto, uma das premissas da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional no que diz respeito à educação para as relações étnico-raciais.
No entanto, como de fato anda a implementação dessa política pública que, indiscutivelmente, representa um marco no processo de combate e enfrentamento do racismo? Primeiramente, deve-se considerar que é inegável a importância da Lei para a construção de uma sociedade antirracista, não sendo seus desdobramentos limitados apenas à estruturação curricular e/ou processos de formação de professores.
Foi diante desta reflexão que a Prof. Dra. Zara Figueiredo Tripodi – recentemente nomeada para gerir a “recriada” Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão , do MEC – iniciou sua fala no Seminário Nacional “Desafios para as Políticas de Enfrentamento ao racismo na Próxima Década”, realizado em novembro de 2022, na cidade de São Paulo. Ao apresentar dados sobre a aprendizagem dos alunos negros, a especialista ressaltou que um dos equívocos da implementação da Lei foi a legislação ter sido interpretada, apenas, como uma política de readequação do currículo numa perspectiva da formação docente.
Constata-se, portanto, que a implementação efetiva da legislação exige uma política de práticas: fiscalização, acompanhamento e intervenção. Ou seja, mesmo com o cumprimento tímido e, muitas vezes, inexistente, “intencionalmente” causado por ruídos de compreensão, interpretação e um “excesso” de indiferença, reconhece-se a necessidade (e urgência) do Estado legitimar práticas efetivas de jurisdição dos sistemas educacionais, bem como, potencializar – em curto, médio e longo prazo – ações para articulação, mobilização, capacitação e impacto da 10.639 nas diferentes etapas e modalidades da educação básica e, não somente, nos ensinos fundamental e médio, conforme preconiza um dos artigos mais emblemáticos da Lei, afinal…
Legitimar as questões étnico-raciais também nas demandas da primeira infância é considerar, sobretudo, o reconhecimento identitário na perspectiva da afrobetização. É diante das minúcias dessa docência que a práxis pedagógica deve debruçar-se, pois a “práxis” vai além da prática – conforme já “esperançava” Paulo Freire. Pois bem!
As “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil” (2010), neste sentido, ratificam que as propostas pedagógicas destas instituições devem prever condições para o trabalho coletivo e para a organização de materiais, espaços e tempos que assegurem “o reconhecimento, a valorização, o respeito e a interação das crianças com as histórias e as culturas africanas, afro-brasileiras, bem como o combate ao racismo e à discriminação […]”. Mas, até que ponto isso de fato acontece?
No livro “Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e discriminação na Educação Infantil” (2000), Eliane Cavalleiro denuncia que a escola é o lócus que mais reproduz comportamentos racistas, justamente por conta do processos de colonização e constituição sócio-histórica do país. Além dessa reprodução, a ausência da consciência identitária por parte dos agentes de educação, intensifica comportamentos que deslegitimam as características ancestrais da nossa sociedade. Neste caminhar, a estrutura eurocêntrica que alicerça as políticas públicas educacionais ainda representa um entrave perante o cenário ideal de construção de relações. Este fato reflete, também, nos cursos de formação de professores e nas demandas de formação continuada e em serviço, que ainda carecem de aportes de instrumentalização para que os profissionais enfrentem essa realidade de forma apropriada e consciente.
Para tanto, não é possível desconsiderar que 47% dos brasileiros se declaram pardos; 9%, pretos e; 1%, amarelos ou indígenas (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios/2019).
Enfim, a questão é que após 20 anos de promulgação da Lei, observa-se esforços isolados, fragmentados e descontínuos, o que não deslegitima a importância e necessidade da legislação. Muito pelo contrário! Após duas décadas, num país reconhecida e assumidamente racista, a 10.639 representa a possibilidade de ressignificar a didática e processos (preta)gógicos, por caminhos que considerem, legitimamente, a urgência da afrobetização e do letramento racial na nossa sociedade.
Por sinal, afrobetização e decolonização do currículo, serão os temas das nossas próximas conversas.
Até breve!